É fundamental que a Escola, sobretudo nos primeiros anos e de uma forma gradual até ao fim do ensino básico, seja o lugar privilegiado da aprendizagem formal. Foi de facto sintomática a espontânea reação das crianças de uma reportagem do Público quando foi anunciado o fim das provas de avaliação externa no final do 1.º ciclo: andámos três anos a treinar para nada! Quanto a mim penso que andámos quatro anos a trabalhar para esse imenso nada que foi uma determinada conceção de Educação, que inverteu o trabalho feito ao longo de 30 anos de Lei de Bases do Sistema Educativo, recuperando ancestrais modelos curriculares e de avaliação e abrindo, com isso, conflitos onde eles não existiam e exacerbando divergências onde elas eram dialogáveis e eventualmente convertíveis em complementares.
É certamente complexa a rede de questões que se cruzam em muitos nós e que, com esses nós, se constrói. Uma rede que deve significar suporte, comunicação, elos que unem, que agregam. Não perceber isto é provocar aqueles outros nós que ensarilham a meada. Começo por defender um período de reflexão e de debate que possa equilibrar (e discernir) aquilo que é urgente mudar e o que carece de um entendimento mais de fundo, global, sobre o que queremos para a Educação em Portugal — que tem muito a ver com o futuro que queremos para o nosso país, as nossas crianças e jovens — e que não pode estar à mercê das ideologias e preconceitos de algumas pessoas. A experiência recente ensinou-nos isso. Mas falemos das mais recentes medidas hoje anunciadas sobre a avaliação no ensino básico — a abolição dos tais “exames” dos 4.º e 6.º anos — refletindo sobre os argumentos que vêm sendo esgrimidos a propósito. Muitos podem, em grande parte, ser identificados na reportagem que comecei por referir e outros começam agora a pulular um pouco por toda a parte. E sejamos objetivos: este tipo de provas não existe, para esta faixa etária, na generalidade dos países com quem partilhamos a mesma cultura e as mesmas grandes opções educativas, não existe em nenhum país da Europa no 4.º ano e, no nosso país, apenas foram retomadas nos últimos três anos, depois de terem sido eliminadas com as reformas educativas realizadas após a queda da ditadura. E não existem porque: são desnecessárias para avaliar os alunos — para isso os professores têm uma variedade de formas e instrumentos de avaliação que, nesta fase devem privilegiar o retorno eficaz e atempado sobre as aprendizagens feitas, as dificuldades detetadas, as potencialidades identificadas, permitindo assim os ajustes e correções a fazer no percurso de cada aluno; são desnecessárias para aferir o sistema já que há outras formas, outros instrumentos, que permitem ir tomando o pulso e validando — ou corrigindo — a adequação de medidas e condições de funcionamento do mesmo. No entanto, mais graves do que a sua “não necessidade”, são os efeitos perversos que induzem e as falhas que encobrem. O primeiro efeito está à vista: andámos a treinar para os exames, como aliás a Associação de Professores de Matemática alertou desde que as provas de 6.º e 4.º ano foram instituídas, quando disse que elas não avaliam as aprendizagens dos alunos de uma forma completa, privilegiando aprendizagens que incidem num conjunto de capacidades e conhecimentos muito restritos e centradas em aspetos mensuráveis e tendem a induzir práticas de trabalho de sala de aula focadas no treino para os exames, com prejuízo de outras aprendizagens mais profundas e estruturantes, chamando também a atenção para outro dos efeitos perversos: distorcem o conjunto do currículo, passando a Matemática e o Português a ter um peso desproporcionado no trabalho em aula e fora dela, sobretudo à medida que se aproxima a realização destas provas (vemos agora que, em muitos casos, o período de preparação para exames já ia muito além disso). E recordando uma vez mais o matemático holandês (e também grande impulsionador de um ensino da Matemática com significado) Hans Freudhental, o exame torna-se um objetivo, o que vem para o exame um programa, o ensino de matéria para o exame um método. Qualquer professor sabe que este é um mau ensino, com profunda falta de rigor, embora muitos se sintam pressionados a segui-lo. Outro conjunto de argumentos parece ter a ver, numa analogia médica, com aquelas medidas que, frente a uma doença, tratam de remediar os sintomas, resolvendo um problema a curto prazo, deixando alastrar o mal para problemas futuros mais graves. E são eles do tipo das tais vantagens indiretas referidas na reportagem como a pressão dos pais (...) para que os filhos não façam má figura... Há também quem argumente com a pressão sobre os professores, como se eles fossem esses “seres irresponsáveis” que precisam da espada de Dâmocles sobre as suas cabeças para trabalharem com seriedade e rigor... Já para não falar do mais básico que verdadeiramente nunca compreendi: eu também os fiz e não me fez mal nenhum... Sim, e depois? Em que é que isso contribui para argumentarmos se esta é, ou não, uma boa medida educativa, como se a escola de hoje fosse a de há quarenta anos (claro que aqui em Portugal a esses quarenta anos teríamos que adicionar um atraso, à época, de cem anos, para os países europeus mais desenvolvidos do ponto de vista educativo)? Como se o que sabemos hoje sobre as aprendizagens fosse igual ao que se (não) sabia então. Como se os alunos de hoje, os pais, a sociedade, fossem os dos anos sessenta, cinquenta, do século passado e os desafios educativos, científicos, tecnológicos e culturais não se tivessem alterado profundamente. Às vezes parece-me que o argumento do rigor e da exigência em defesa dos exames, sobretudo quando chega de sectores ligados ao ensino superior que tão pouco conhece do ensino básico, visa uma autojustificação de práticas letivas desinteressantes que não se mudam há décadas, pese embora os desafios académicos e científicos do presente. Não quero escamotear a existência de dificuldades várias no nosso sistema de ensino, inclusive a existência de alguns profissionais com mais fragilidades. Mas porque é que as medidas legislativas, no nosso país, devem ser feitas a pensar nos prevaricadores (felizmente poucos) e não nos que cumprem? Para quem tanto alardeou o perigo da “incompetência” de alguns professores, não se percebe a forma como desinvestiu na sua formação contínua, nos programas de acompanhamento, sobretudo em níveis de ensino e em áreas disciplinares em que a formação inicial dos docentes possa ter tido lacunas em conhecimentos específicos. É fundamental que a Escola, sobretudo nos primeiros anos e de uma forma gradual até ao fim do ensino básico, seja o lugar privilegiado da aprendizagem formal. Fora da escola, as crianças podem e devem ter tempo livre, fazer outras aprendizagens que completem e reforcem as aprendizagens escolares ou simplesmente brincar. Já não era mau que não se incutisse nas crianças essa fatalidade genética de quem não vai conseguir ter sucesso a disciplinas como a Matemática porque pais, avós e restante família nunca tiveram jeito para o assunto. Mas seria bem mais interessante podermos desenvolver, a partir da escola, tipo de tarefas para os pais poderem fazer em casa no seu quotidiano familiar, sem ser a resolução dos TPC (não estou a dizer que não se devam fazer com conta peso e medida, mas esse tipo de trabalhos é para os alunos, e para eles deve ser adequado, não para os pais ou explicadores). É importante que à Escola e aos professores sejam dadas condições de trabalho e apoios que visem este amplo, rico, diversificado objetivo de uma educação capaz de, transmitir conhecimentos (de forma compreensiva e significativa, coisa que, não só não se opõe à memorização, mas que até a facilita) e com isso, e com a prática letiva, desenvolver capacidades, raciocínios, sentimentos de autoconfiança e de gosto pelo saber. Assim, poderemos combater, a longo prazo, a pouca valorização social da Escola e do Saber. Assim, educaremos para a responsabilidade, para o poder do saber situar-se na sociedade, na profissão, na vida, com competência intrínseca e não só pelo fazer figura ou com incentivos de competição que não parece estar a ter bons frutos nas sociedades hodiernas. Finalmente, vamos ao argumento mais disseminado neste últimos dias: a necessidade de estabilidade, o “não andar sempre a mudar”, como se isso seja de facto o que aconteceu. Pouca gente se pareceu preocupar com as profundas alterações introduzidas nos últimos quatro anos e meio no ensino em Portugal e que foram muito mais do que os tais exames. As alterações curriculares, por exemplo, feitas sem avaliação, de uma forma precipitada: os programas de Matemática e Português do Ensino Básico tinham acabado de ser implementados, para serem liminarmente e integralmente substituídos por outros sem paralelo. E agora eleva-se o coro dos que pedem avaliação das medidas e estabilidade. Ora convenhamos: medidas como a eliminação destas provas não precisam de avaliação. Basta o conhecimento (sim, que também há conhecimento construído sobre estas matérias). Sobre a estabilidade, não podia estar mais de acordo. Ela existia, no fundamental, desde a Lei de Bases de 1986 e a reforma curricular dos anos 90 e resistiu às mudanças de cor política dos diversos governos, em que as alterações provinham essencialmente da identificação de dificuldades ou pontos a melhorar. É certo que alguns ministros deixaram a sua marca, talvez até controversa, mas sem afetar o essencial. Na (pen)última legislatura tudo mudou para pior, com mudanças apenas orientadas por preconceitos ideológicos e por meras “visões”. Por isso, não. Estabilidade à custa desta situação de exceção ao arrepio da investigação especializada e da prática internacional, não quero. Quero reflexão — uma ampla reflexão — compromisso — um alargado compromisso — e melhoria. Por isso, vão-me desculpar, mas já não suporto argumentos simplistas e enviesados dessa enraizada ciência do “achismo” e dos mais pobres lugares comuns carenciados de qualquer fundamentação, entre os quais emerge o mais terrível preconceito de dizer que hoje os alunos nada sabem e que no meu tempo... Hoje é que é o tempo, o nosso tempo. É tempo de encararmos a questão educativa com seriedade e com coragem. E recuperar a capacidade de sonhar e de se entusiasmar com a causa da Educação. Lurdes Figueiral - PÚBLICO Presidente da Associação de Professores de Matemática «http://www.publico.pt/sociedade/noticia/a-treinar-para-nada-1719755?page=-1»
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Há outras medidas muito urgentes na área da educação. Mas a questão docente é a primeira. As candidaturas ao ensino superior são um precioso campo de observação, revelando que para entrar em medicina, gestão, economia ou direito numa universidade prestigiada, “séria”, são exigidas médias próximas dos 20 valores. Estão em disputa as profissões mais gratificantes e os cursos de maior prestígio, que se mantêm nas universidades. Quem não atinge estas médias tem de contentar-se com o que sobra: ensino superior de segunda categoria, público ou privado, onde se entra com a nota mínima e de onde se sai com o menor esforço. Sem ofensa e com a devida vénia aos talentos e vocações que ainda possam fugir à regra, não será exagerado afirmar que os candidatos a professores são hoje o “refugo” das candidaturas ao ensino superior, são os que não conseguem entrar nos cursos “nobres”. É aqui que se define a qualidade da educação: ou conseguimos recrutar os melhores ou não teremos educação para um estado forte, com uma economia sólida e os melhores índices de qualidade em todos os setores e serviços. Não é possível fazer da escola o motor do desenvolvimento se a entregarmos aos menos qualificados e menos competentes.
Para inverter esta tendência, não basta tornar a profissão de professor mais apelativa em termos de remuneração. É preciso sobretudo dar-lhe estabilidade, segurança, estatuto e dignidade, que é tudo o que não tem. É preciso torná-la atrativa. Há países onde a profissão de professor é das mais prestigiadas e disputadas. É a primeira escolha. Vejamos o caso da Finlândia, tantas vezes referida pelos resultados de excelência que obteve ao longo de décadas nos rankings do PISA. Um analista francês [1] identifica os segredos do sucesso e, no que respeita aos docentes, destaca: a profissão é altamente prestigiada, o recrutamento é muito exigente, a formação inicial muito aprofundada, as condições de trabalho excelentes, a liberdade pedagógica é total e é estreita a ligação à universidade e a uma formação contínua específica e focada. Os professores são verdadeiramente especializados. Como exemplo, o mesmo autor apresenta o modelo de recrutamento de candidatos a professores seguido pela faculdade de educação de Joensuu: de cerca de 1200 processos de candidatura a docentes do ensino básico – carta de apresentação e CV – são selecionados 300 por ano, que se submetem dois dias inteiros a testes, entrevistas e debates observados. Apenas os 80 melhores candidatos são admitidos. No ensino secundário o processo é idêntico: os candidatos a docentes das várias disciplinas passam pelas mesmas provas. O rigor no recrutamento e na formação asseguram altos padrões de qualidade e excelentes resultados, de tal modo que a Finlândia dispensa a pesada máquina da Inspeção da Educação. As escolas têm meios, em ligação com a universidade, para assegurar a formação e a qualidade dos docentes e da educação. Entre nós, o programa do novo governo identifica bem o problema e aponta as três medidas mais urgentes nesta área: “Valorizar a função docente”, “Rever o processo de recrutamento de educadores e professores” e “Relançar programas de formação contínua, em articulação com instituições de ensino superior, integrados numa política ativa de valorização dos professores e educadores”. Se este caminho tivesse sido seguido pelos 20 governos constitucionais e pelos quase 30 ministros da educação posteriores ao 25 de abril, a prometida democratização estaria cumprida. Mas não está. Quando o novo governo fala de um novo impulso, de um novo rumo e de um virar de página nas políticas de educação, é importante não esquecer a história e tantas promessas por cumprir. Mas importa registar e aplaudir o compromisso assumido. É também uma nova esperança. Valorizar a profissão, atrair e recrutar os melhores e requalificar os que já estão em exercício. Este compromisso do novo governo tem de ser também um compromisso assumido pelas escolas e pelos próprios professores. A requalificação e especialização dos professores e educadores parecem hoje mais fáceis. O esvaziamento dos cursos de formação inicial abre espaço para a formação dos docentes em exercício. As instituições de ensino superior vocacionadas para a formação de professores e educadores, nos planos científico e pedagógico ou da formação especializada, reúnem condições para esta requalificação e especialização. O ensino superior pode preencher o espaço vazio da formação inicial pela formação e especialização dos professores em serviço. Por outro lado, as escolas do ensino básico e secundário têm professores experientes, qualificados e especializados para assegurar o acompanhamento e a formação em contexto de trabalho. Articulando com o ensino superior, é possível melhorar a qualidade do serviço educativo de modo a reverter o atraso crónico de que sofremos. Há outras medidas muito urgentes na área da educação. Mas a questão docente é a primeira, porque são os professores que têm de as levar à prática. Não podemos mudar a escola e a educação sem os professores. E sem melhores professores. OPINIÃO José Afonso Baptista - PÚBLICO 1] Robert, Paul (2006), L’éducation en Finlande: Les secrets d’une étonnante réussite. «http://www.publico.pt/sociedade/noticia/a-motivacao-e-o-compromisso-dos-professores-1719204» |