Há crianças com seis anos que nestas férias da Páscoa têm quase duas dezenas de folhas de fichas para fazer. Os leitores do PÚBLICO relatam o que está a acontecer nesta pausa escolar. Gritos, reprimendas, cansaço. Estes são alguns dos efeitos na “dinâmica familiar” dos chamados trabalhos para casa (TPC) relatados por várias mães. O PÚBLICO lançou este desafio aos leitores: se tiver filhos no 1.º ciclo de escolaridade (entre os seis e os 10 anos), conte-nos quantos trabalhos para casa vão ter de fazer nas férias da Páscoa. Também perguntámos se costumam ajudar os filhos nesta tarefa e se pensam que os TPC ajudam a ter melhores resultados. Chegaram cerca de 50 respostas, das quais apenas quatro enviadas por pais (homens).
Só cinco dizem que os filhos vieram para férias sem trabalhos para casa. Já 20 dão conta de que as suas crianças têm cinco ou mais fichas para fazer e há mesmo quem, aos seis anos, já tenha quase duas dezenas de folhas de fichas para despachar nesta pausa escolar, de apenas duas semanas. Teresa Melo tem duas filhas, uma como sete anos, outra com 18 meses. Está separada e a jornada de trabalho em casa começa a partir das 18 horas, altura em que a filha mais velha termina as suas actividades. Conta o seguinte: “O cenário diário cá em casa é este: a partir das 18 horas eu estou em ansiedade a tentar ajudar a minha filha mais velha com os trabalhos e ao mesmo tempo a tentar tomar conta da bebé, que naturalmente a esta hora solicita a minha atenção e desestabiliza por completo a mais velha. É frequente a coisa descambar em gritaria”. Por via da experiência com o filho mais velho, Filipa Azevedo, que tem três crianças entre os quatro e os 10 anos, está agora do lado dos que consideram que os TPC “são contraproducentes para a dinâmica familiar”. “No meu caso em particular, deram azo a discussões tremendas, gritos e reprimendas que poderiam perfeitamente ser evitadas se não tivessem sido passados tantos TPC”, conta. Diz também que a situação só melhorou quando, recentemente, se desempregou para se dedicar em exclusivo aos filhos, já que está grávida de uma quarta criança e o seu ordenado era “demasiado pequeno para pagar as Actividades de Tempos Livres e as explicações necessárias”. Mas não deixa de sublinhar o seguinte a propósito desta experiência: “Extraordinário que, nos dias de hoje, tenha sido preciso eu tornar-me dona de casa para conseguir salvar o casamento e manter a família no caminho”. Os TPC “devem ser frequentes, mas não longos” Pedro Rosário, professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho Pedro Rosário, professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, chama a atenção precisamente para o facto de o debate em torno dos TPC ser muito influenciado “pelas repercussões que estes têm nas famílias e não tanto pelos seus propósitos educacionais”. Mas este docente, que tem centrado parte da sua investigação neste tema, frisa que também os objectivos pedagógicos dos TPC ficam postos em causa quando estes são em excesso. “Toda a investigação mostra que os trabalhos para casa devem ter uma carga adequada às idades. No caso do 1.º ciclo, se estes são pensados para durar mais de 30 minutos por dia, e isto já no caso do 4.º ano de escolaridade, tornam-se insuportáveis”, afirma. O que dizer então, por exemplo, do caso de Rita Pereira? Tem uma filha de seis anos que está no 1.º ano de escolaridade. Trouxe para férias 16 folhas de fichas de Português, Estudo do Meio e Matemática. A mãe, educadora de infância desempregada, diz que o trabalho já foi concluído, mas desabafa: “Os TPC são em excesso. Não me posso esquecer também de quantas fichas as crianças ainda não sabem preencher e que se pretende que os pais o façam com elas a meio da semana”. A filha de Maria João Calvário tem sete anos, está no 2.º ano de escolaridade e chegou a casa com “28 folhas de fichas para fazer. No Natal foram 20”. A de Ana Oliveira tem seis anos, está no 1.º ano de escolaridade e chegou a férias com “13 páginas A4 de trabalhos para casa”. “Os TPC poderão ajudar as crianças a manter a memória do que estava a ser leccionado antes das férias, mas francamente é preciso muito mais bom senso na quantidade de trabalho que é exigida a crianças tão pequenas”, protesta. A filha de Isabel Santos tem nove anos e está no 3.º ano de escolaridade: “Nas férias tem de fazer seis fichas de Português, oito de Matemática e mais 15 exercícios no caderno”. “É um absurdo”, comenta. Este é também o termo utilizado por Pedro Rosário e pela presidente da Associação de Professores de Matemática (APM), Lurdes Figueiral, quando confrontada com estas situações. “Está mais do que provado que não é por repetirem mais do mesmo que as crianças aprendem. Isto só faz com que venham a odiar a escola, a disciplina e o estudo”, justifica Lurdes Figueiral. Esta docente considera que, por norma, os alunos não devem levar trabalhos para as férias, porque existem outras actividades que “favorecem o desenvolvimento das suas capacidades” e que são diferentes das que realizam nas escolas, o que constitui, frisa, um ponto a seu favor. E as férias existem? “Perdemos ambas horas das nossas férias a fazer os trabalhos em vez de estarmos a desfrutar de tempo de qualidade juntas”, lamenta Mónica Diniz, que tem uma filha no 2.º ano, com quem terá de fazer cinco fichas e uma composição durante esta pausa escolar. As férias são para descansar. Se para os adultos que trabalham férias é não trabalhar, porque seria diferente para as crianças? Maria José Araújo, Universidade do Porto Marta Guerreiro, que tem um filho de seis anos no 1.º ano de escolaridade, lamenta que o “drama” que já viveu nas férias do Natal se volte a repetir agora na Páscoa. “São três fichas de Português e três de Matemática. Na teoria não é muito, na prática é imenso. É que às férias dos filhos não se juntam as férias dos pais, o que significa que ele continua a ficar na escola” frequentando as actividades que são oferecias nas pausas escolares. “Continuamos a chegar a casa às 19 horas e a rotina dos TPC, banhos, jantares e preparação do dia seguinte repete-se com crianças e pais exaustos. Na prática não são férias”, conta. Maria José Araújo, do Centro de Investigação e Intervenção Educativa da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, é peremptória: “As férias são para descansar!”. “Se para os adultos que trabalham férias é não trabalhar, porque seria diferente para as crianças?”, questiona esta investigadora, lembrando que as férias são “um direito” necessário a qualquer ser humano. “Os adultos não podem condicionar esse direito ao descanso ou estarão a cometer uma ilegalidade”, sustenta, remetendo para a Convenção sobre os Direitos das Crianças, aprovada em 1989 pela Organização das Nações Unidas, onde se estipula que estas têm “direito ao repouso, a tempos livres e a participar em jogos e actividades recreativas próprias da sua idade e participar livremente na vida cultural e artística”. “São cargas completamente inadequadas”, comenta também Pedro Rosário, alertando que esta situação denota que “existe uma lacuna da formação dos professores que é preocupante”. Até porque tudo o que tem sido estudado sobre os TPC, acrescenta, demonstra que estes são só eficazes, em termos de melhoria de aprendizagens, quando em simultâneo têm “uma carga e um propósito adequados, que tem de ser explícito e deve ser comunicado aos alunos”. “Se o aluno perceber que o trabalho tem utilidade para si, está mais disponível para o realizar”, especifica. Trabalhos diários Os TPC são desde há muito um motivo de polémica. Há quem os defenda acerrimamente, há quem os conteste e até existem escolas que já decretaram a sua morte, como é o caso do Agrupamento de Escolas de Carcavelos, no concelho de Cascais. Está mais do que provado que não é por repetirem mais do mesmo que as crianças aprendem. Isto só faz com que venham a odiar a escola, a disciplina e o estudo Lurdes Figueiral, presidente da Associação de Professores de Matemática Num relatório recente sobre a carga de trabalhos para casa, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) referia que basta a palavra TPC para “provocar reacção epidérmicas na maior parte dos alunos”. Do conjunto dos países da organização, os alunos portugueses de 15 anos davam conta de que, em média, dedicam aos TPC cerca de quatro horas por semana, ficando assim Portugal ente os 10 países em que os estudantes, naquela idade, gastam menos tempo com as tarefas que lhes são passadas pelos professores para realizar em casa. Mas em idades mais precoces, como aquelas que foram alvo do nosso inquérito, a situação inverte-se e está mesmo a léguas de distância do quotidiano em França, Espanha ou na Finlândia, onde os TPC foram já abolidos oficialmente, embora nos dois primeiros países existam escolas que continuem a insistir nesta prática, o que motivou até uma greve de pais. No geral, os leitores que responderam ao desafio do PÚBLICO até concordam com a existência de trabalhos para casa, desde que sejam “com conta, peso e medida” e não representem uma exigência diária. Também entre os leitores há quem conteste não a existência dos TPC, mas sim o tipo de exercícios que são passados pelos professores para os alunos realizarem em casa porque, como afirma Ana Carvalhal, que tem um filho no 2.º ano de escolaridade, são uma “mera continuação do que já passam horas a fazer na escola”. E quase todos, de uma forma mais ou menos activa, ajudam os filhos a fazer os TPC. Sofia Coutinho, que tem dois filhos de sete e três anos, assume que o que foi sabendo desde que nasceu o mais velho, que entrou este ano no 1.º ciclo, a leva a estar do lado do “não rotundo aos trabalhos de casa”. “Portanto, cá em casa, o esquema é simples: se a realização dos trabalhos de casa colidir com a rotina familiar (onde se incluem as brincadeiras entre os dois irmãos que passam o dia inteiro sem se verem), o mais velho não faz os TPC e leva um recado para a professora nesse sentido”, relata, acrescentando que ainda não teve reclamações da docente. Para Maria José Araújo, a existência de TPC diários no 1.º ciclo “não faz sentido”. “Depois das aulas as crianças devem brincar. Brincar é aprender a conhecer os outros e o mundo. É uma forma de estudar”, defende, frisando que enquanto não se perceber isto “andaremos todos e todas a fazer um mau serviço às crianças”. Não me choca a existência de TPC, mas também não me chocava a inexistência dos mesmos, pois acho que as crianças/jovens estão muito tempo na escola Tânia Sardinha, mãe e professora Já Pedro Rosário defende que os TPC “devem ser frequentes, mas não longos”. Os trabalhos para casa são “um termómetro da autonomia dos alunos e também as suas competências”, diz, frisando que quando um aluno não é capaz de os fazer tal deve constituir “um alerta para o próprio, para os professores e famílias quanto às competências que estão em falta”. “O problema é que se está a matar os TPC por causa da sua má qualidade e de uma carga exagerada que é desorganizadora e que não facilita a motivação e o envolvimento nas tarefas”, alerta. Tudo depende em muito dos professores que saem na rifa às crianças, adianta Tânia Sardinha, mãe de duas filhas que estão no 1.º e 2.º ano de escolaridade e que é também professora do 3.º ciclo e do secundário. Diz que as filhas terão de fazer “apenas uma ficha de cada uma das áreas [Português, Matemática e Estudo do Meio] ”. “Têm sorte com as professoras que apanharam, pois nenhuma delas exagera na quantidade de TPC”, comenta. Acrescenta que, enquanto professora, “por norma, não envia trabalhos para casa”. “Não me choca a existência de TPC, mas também não me chocava a inexistência dos mesmos, pois acho que as crianças/jovens estão muito tempo na escola e que esta deveria ter um espaço e um tempo para que todas tarefas ficassem feitas”, defende. Porquê? “As crianças precisam de brincar, de dormir e de ter tempo para estarem com os pais. Os adolescentes precisam de tempo para conviver com os seus pares, namorarem e estarem com as suas famílias”, resume. Clara Viana - PÚBLICO «https://www.publico.pt/sociedade/noticia/e-se-jogar-com-o-seu-filho-em-vez-de-o-ajudar-a-fazer-uma-ficha-1727278?page=-1»
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É incompreensível e inaceitável a letargia com que olham a Educação de Adultos.
Nestes últimos anos, a escolarização dos adultos apresenta um panorama de irregularidades com altos e baixos. Descurada, desprezada e negligenciada pelos nossos políticos, os quais focalizados nas questões iminentes da escolarização obrigatória descuram as oportunidades que se impõem para aqueles que deixaram de prosseguir estudos por circunstâncias da vida, ou por não terem agarrado a oportunidade surgida no seu tempo. Contudo, muitos adultos com baixa escolaridade almejam voltar aos bancos da escola para aprender a ler e a escrever com vista a adquirir mais conhecimentos e competências, úteis à vida. Os números divulgados na base de dados da PORDATA evidenciam um quadro consternador, pois se o analfabetismo diminui substancialmente entre 1970 (25,7%) e 2011 (5,2%), presentemente Portugal permanece em último lugar da tabela a nível europeu. Face ao exposto, cabe à tutela, através de um trabalho árduo e profícuo, implementar estratégias em vista de diminuir esta realidade. É de salientar que nestes últimos seis anos não funcionaram cursos certificados de alfabetização para adultos, daí que este quadro se mantenha sensivelmente idêntico. A mesma fonte informa que 23,8% da população portuguesa com 15 ou mais anos concluiu apenas o 1.º Ciclo, 11,2% o 2.º Ciclo e 20,5% o 3.º Ciclo. Este último valor, a par da percentagem de indivíduos com o ensino secundário e pós-secundário ou ensino superior, evidencia um aumento, o que em si é positivo. Todavia, este processo ascensional só terá garantias de continuidade se for suportado por uma plataforma de medidas permanentes e estáveis, facilitadoras dessa meta. Talvez preocupado com os valores acima apresentados e sob o lema “Aprender Compensa”, o XVIII governo constitucional criou os centros novas oportunidades (CNO), extintos em março de 2013, tendo dado lugar aos centros para a qualificação e o ensino profissional (CQEP) “na construção de pontes entre os mundos da educação, da formação e do emprego, numa perspetiva de aprendizagem ao longo da vida”, tutelado pelo Ministério da Educação, Ministério da Economia e do Emprego e Ministério da Solidariedade e da Segurança Social. Os objetivos dos 2 programas são idênticos, embora os CQEP admitam jovens com mais de 15 anos de idade, para além, obviamente, de adultos. Os CNO foram abertos a inúmeras entidades que aplicaram a legislação de forma diferente, muitas vezes com interpretações distintas, de acordo com a proveniência do ministério em causa e mesmo dentro de cada um dos ministérios. Esta desarticulação tripartida conduziu igualmente a uma ausência de harmonia entre as entidades que estavam no terreno, originando relativa descredibilização, sobretudo quando o programa era acusado, quantas vezes injustamente, de facilitismo, dada a “rapidez” com que era concluído. O sucessor dos CNO, os CQEP, começaram a funcionar plenamente (?) no ano letivo de 2013/14. No entanto, a Educação de Adultos, drasticamente reduzida, muito por culpa da falta de financiamento (fundos comunitários…) impediu a afetação de recursos físicos e humanos para o seu normal funcionamento, tendo sido por isso relativamente escassa a respetiva formação. Qual a vantagem da (aparente) mudança? Era imprescindível? Contudo, é incompreensível e inaceitável a letargia com que olham a Educação de Adultos, mau grado o trabalho meritório exercido nesta área por escassas instituições, mas sobretudo pelas academias seniores, grandemente negligenciadas. É incompreensível quando o quadro comunitário 2020 (2014-2020) privilegia o “investimento no capital humano” e o Programa Operacional Capital Humano “mobiliza o Objetivo Temático 10, Investir na educação, na formação e na formação profissional para a aquisição de competências e a aprendizagem ao longo da vida.” Este objetivo temático estrutura-se em 4 grandes eixos, do qual pretendo só enunciar 2: “o Eixo 1, Promoção do sucesso educativo, do combate ao abandono escolar e reforço da qualificação dos jovens para a empregabilidade”, e “o Eixo 3, Aprendizagem, qualificação ao longo da vida e reforço da empregabilidade.” Trata-se de um investimento válido, proveitoso e proficiente. Existem fundos comunitários como tal, conclui-se que impera falta de interesse e vontade para reduzir os números que nos envergonham. Acredito que o Ministério da Educação não irá desprezar este problema, implementando rapidamente medidas que ajudem a ultrapassá-lo. Urge pôr mãos à obra! As escolas públicas e as instituições (educativas) financiadas pelo Estado têm a responsabilidade de contribuir para dar resposta a estas pessoas mais velhas, doutores da vida, mas que não sabem ler nem escrever, ou possuem escolarização baixa (os seus percursos escolares foram curtos ou intermitentes) e pretendem elevá-la. Filinto Lima - PÚBLICO «https://www.publico.pt/sociedade/noticia/educacao-de-adultos--agora-ou-nunca-1727006» |