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Os bons pais erram! Esganiçam-se, têm “ataques de nervos” e “passam-se”! Tirando os pais que fazem de Dupont e Dupond, e aqueles que nunca se enganam e raramente têm dúvidas, todos os outros são bons pais! Os pais tão depressa reconhecem que a sua infância terá sido mais livre, mais amiga do brincar, menos atolada em compromissos e mais feliz como, ao mesmo tempo que não fazem tanto como deviam para replicarem essa “fórmula de sucesso”, repetem (de forma exaustiva) que quase tudo seria diferente na relação com os seus filhos se eles nascessem equipados com manuais de instruções. Não serão estes pais escolarizados tentadoramente tecnocráticos? E se ainda hoje guardam a infância como um período feliz, isso deve-se ao bom manual de instruções que os seus pais seguiram a preceito ou ao modo como tiveram tempo para ser crianças, com a ajuda preciosa que isso representa para cicatrizar trapalhadas e engendrar paixão pela vida e engenho para crescer? Seja como for, se a desculpa passa por não haver um “manual de instruções”, vamos lá imaginar um, mais ou menos clandestino, para que não haja mais desculpas...
1. Nunca estamos preparados para ser pais. As crianças dão imenso trabalho. Só crescemos com elas quando somos obrigados a crescer. E nada é fácil para os pais. 2. Nunca se educa só por instinto (materno ou paterno). Mas quando se educa “by de book” todas as crianças se estragam. 3. As crianças precisam de tempo para crescer. E precisam de (muitas) oportunidades para aprenderem a ser crianças! 4. Todas as crianças são inteligentes. E se, hoje, elas parecem mais espertas, é porque os pais, quando os filhos são pequeninos, as estragaram muito menos. 5. Todas as crianças saudáveis são de ideias fixas e são teimosas. A teimosia depende, de forma direta, do modo como elas sentem que o pai ou a mãe ora se zangam, como deviam, ora hesitam e se encolhem, quando se trata de lhes dizer: “Não!”. São, portanto, precisos ritmos, regras e rotinas coerentes e constantes para crescer. 6. Todas as crianças sabem o que querem. Se o não manifestam, e são certinhas, é porque têm medo de contrariar os pais. Já aquelas que parecem ter uma “personalidade forte” estão a transformar-se, contra a vontade de todos, em chefes da família. E isso só lhes faz mal! 7. Todas as crianças precisam de brincar duas horas, todos os dias, depois do jardim de infância ou da escola. Brincar é tempo livre! Tempo gerido por elas, sob o olhar atento de um dos pais ou dos avós. 8. Os brinquedos não têm sexo. Não é a forma como os rapazes brincam com bonecas ou as raparigas com carrinhos que estraga as crianças na sua relação com a identidade. Mas o modo como o pai e a mãe se dão como modelos, com equívocos (levando a que nem sempre apeteça, quando se cresce, ser como eles), ajuda a isso. 9. Todas as crianças precisam de correr, de falar alto, de se mexer e de imaginar. Transformar vídeos, telefones, tablets ou computadores em babysitters, todos os dias e a todas as horas, faz mal à saúde das crianças. 10. Para serem felizes, as crianças precisam de estar tristes. Crianças que podem estar tristes são crianças mais seguras. 11. Sempre que uma criança está triste, os pais estão proibidos de perguntar porque é que ela está assim. Mas se lhe derem um bocadinho de corpo de mãe ou de pai (sem palavras!) a tristeza delas leva a que cresçam melhor. 12. As crianças não crescem felizes à margem da autoridade dos pais. Os pais saudáveis dão com uma mão e exigem com a outra. Não explicam todas as regras nem as justificam, mas exigem em função dos exemplos que dão. Sem nunca falarem demais! 13. As crianças felizes têm nas birras o “último grito” duma “prova de vida”. Significa que têm pais atentos mas que não são nem ameaçadores nem tirânicos. Por mais que uma birra não possa ter muito mais de 10 minutos! 14. Crianças felizes não se transformam em metas curriculares para os seus pais. 15. A família ensina mais que a escola e brincar é tão indispensável como aprender. Logo, crianças que, para além da escola, se desdobram em atividades extra-curriculares e trabalham das oito às oito, crescem infelizes e com pouca amizade pelo conhecimento. 16. Crianças felizes ligam orgulho, esperança e humildade. São valorizadas por aquilo que fazem bem, são corrigidas sempre que se enganam e repreendidas logo que não tentam. 17. As crianças não são o melhor do mundo, para os pais, se as relações amorosas adultas, que eles tiverem, viverem, unicamente, à sombra delas. 18. As crianças precisam de mãe e de pai para crescer. Pais que convivam, mesmo que não coabitem. E ganham se os sentirem, diariamente, atentos e participativos. 19. O pai e a mãe não estão sempre de acordo. E isso torna as crianças mais saudáveis! O desacordo dos pais está para o seu crescimento como o contraditório para o exercício da justiça. 20. As madrastas ou os padrastos, quando os há, nunca são tios! São segundos pais! Devem, portanto, dar colo, exercer a autoridade e promover a autonomia como só os bons pais sabem fazer! 21. Os avós devem “estragar” as crianças com mimos. Quanto mais os avós interpelam os pais, mais as crianças crescem saudáveis. 22. Os bons pais estão autorizados a não se zangarem um com o outro à frente das crianças! Por mais que isso não adiante quase nada. Na medida em que, por maiores que sejam os seus cuidados, as crianças nunca deixem de sentir se eles estarão ligados um ao outro, amuados ou, até, birrentos. 23. Os bons pais não se desautorizam um ao outro, diante das crianças. Se bem que elas reconheçam que, sempre que a mãe e o pai discordam, a propósito delas e seja acerca do que for, é impossível que alguém fique indiferente. 24. Os bons pais erram! Esganiçam-se, têm “ataques de nervos” e “passam-se”! Tirando os pais que fazem de Dupont e Dupond, e aqueles que nunca se enganam e raramente têm dúvidas, todos os os outros são bons pais! Sobretudo, quando assumem, com lealdade, que aprendem sempre que se reconhecem num erro. 25. Os bons pais adoram os filhos e adoram estar sem eles! Mas os bons pais não podem viver os seus tempos sequestrados pelos tempos dos filhos. Pais que namoram todos os dias são melhores pais! Pais que confiam os filhos à guarda dos avós ou dos tios, uma vez por mês, ao fim de semana, amam-nos mais! 26. Os bons pais reconhecem que, todos os dias, há 200 minutos, que separam as crianças da felicidade: 30 minutos de filho único de mãe ou de pai, depois da escola; 120 minutos para brincar, todos os dias; 30 minutos para jantar, sem televisão; 20 minutos para namorar com a vida e para contar uma história, antes de adormecer. 27. Crianças felizes gerem cabeça, coração, corpo e alma; pais, irmãos, avós, tios e amigos; escola e brincar. Têm dores, têm medos, têm sonhos e projetos. E tudo isso ao mesmo tempo! Mas não são felizes se precisarem de ser “as melhores do mundo”. Para serem felizes, basta que sejam um bocadinho do melhor que há no mundo para quem só lhes quer bem. Eduardo Sá - Pais & Filhos «http://www.paisefilhos.pt/index.php/destaque/8426-manual-de-instrucoes-para-uma-crianca-feliz»
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Enquanto o acesso destes jovens a instituições especializadas, após a maioridade, estiver condicionado por qualquer numerus clausus, os nossos políticos não poderão dormir descansados. Nem nós! A Educação é uma das áreas mais complexas da sociedade e, também, da ação dos nossos governantes. As suas múltiplas facetas obrigam os profissionais a ter preparação adequada que, muitas vezes, não se adquire com a licenciatura, mas em formação contínua, até porque as alterações são uma constante.
A Educação Especial (EE) – antes era denominada de Ensino Especial – é uma especificidade relativamente recente no panorama nacional, pelo menos, tendo em conta a formação dos respetivos docentes e a criação dos grupos de recrutamento (910 – apoio a crianças e jovens com graves problemas cognitivos, com graves problemas motores, com graves perturbações da personalidade ou da conduta, com multideficiência e para o apoio em intervenção precoce na infância, 920 – apoio a crianças e jovens com surdez moderada, severa ou profunda, com graves problemas de comunicação, linguagem ou fala e 930 – apoio educativo a crianças e jovens com cegueira ou baixa visão). Sabemos que a EE é apoiada pelos centros de recursos para a inclusão, normalmente assumidos pelas Appacdm (Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental) e Cerci (Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos com Incapacidades) dos diversos territórios educativos. O apoio que prestam (Psicologia, Terapia Ocupacional, Terapia da Fala, Fisioterapia) aos alunos é insuficiente e todos os anos contestado pelos encarregados de educação e julgado escasso pelas escolas. Não raras vezes é notícia – por maus motivos – dada pelos media, no início do ano, mas também durante o mesmo, colocando em causa a falta de recursos, físicos mas sobretudo humanos, (in)existentes nas escolas. Os alunos que beneficiam deste ramo da Educação são muito bem tratados nas escolas e muito felizes. Os encarregados de educação, extremamente exigentes, sentem-se seguros e realizados pela qualidade do ensino prestado aos seus filhos por excelentes profissionais, quer docentes quer não docentes. Contudo, a preocupação destes pais é mais profunda e complicada, sobretudo e principalmente, daqueles cujos filhos frequentam unidades de multideficiência existentes em algumas escolas, acompanhados de um currículo específico individual. Se é certo que até aos 18 anos, estes alunos estão integrados no ministério de Educação, a partir daquela idade passam para a alçada de outro ministério (Segurança Social) ou…de ministério nenhum. O grande problema desta franja de alunos é a sua colocação numa instituição especializada, depois de atingirem a maioridade, limite da frequência da escola regular. Assim, é posto em causa o trabalho efetuado, por falta de continuidade e sob a ameaça de ficarem em casa o resto da vida. E o Estado não se pode alhear deste enorme drama, de todos, especialmente dos pais, nem meter a cabeça na areia como tem acontecido até agora, pois muito pouco foi feito. Na verdade, é sabido que as necessidades de vagas para estes cidadãos após os 18 anos é imensa, sendo mais aqueles que ficam em casa do que os que entram e passam a frequentar as instituições que deveriam ser para todos. Esta situação é imensamente injusta, por quatro fatores principais: – Desperdício que se fez nos anos anteriores, no investimento na educação destes jovens que, assim, “vai por água abaixo”; – Estando em casa, não evoluem como seria desejável, pois não são estimulados, nem acompanhados por professores e técnicos especialistas; para muitos, é o primeiro dia do resto das suas vidas; – Os encarregados de educação ficam desesperados pela ausência de resposta efetiva, sentindo-se ainda mais perdidos; – Ausência de tratamento diferenciado, sendo colocada em causa a justiça social e a igualdade de oportunidades. Por isso, há que fazer um esforço para dar a todos estes jovens uma resposta efetiva, tendo em conta as suas reais necessidades e capacidades, não sendo abandonados por quem tem a obrigação de lhes dar um futuro condigno. Enquanto o acesso destes jovens a instituições especializadas, após a maioridade, estiver condicionado por qualquer numerus clausus, os nossos políticos não poderão dormir descansados. Nem nós! Filinto Lima - PÚBLICO «https://www.publico.pt/sociedade/noticia/muito-especiais-e-depois-1722929» “Birds born in a cage think flying is an ilness/ Os pássaros nascidos em gaiolas pensam que voar é uma doença.” Alejandro Jodorowski Em 2014 celebram-se quatro séculos sobre a morte do pintor eternamente associado a Toledo, El Greco. Dele afirma Fernando Marías, o comissário científico da fundação que em Espanha anima as celebrações, que El Greco não pintou imagens, mas seres vivos em ação dinâmica, na comoção emotiva que os faz estar em movimento. Diz ainda que foi incompreendido na sua época por introduzir incorporalidade e diferente matéria ao que é de carne e osso, trazendo ao real componentes visuais e sensuais que inventaram novas formas, melhores do que as da terra, para pintar o invisível, deixando a todos o legado de um mundo que nunca chegou a acontecer.
Extasiada com o território de possibilidades criadas por um pintor – por tantos pintores, músicos, ensaístas, dramaturgos, cineastas, filósofos.... – leio o livro de Martha Nussbaum (2010), Not for Prophit – why democracy needs the humanities e mergulho na forma incisiva, que partilho, como analisa e critica o facto de termos vindo progressivamente a excluir as artes e humanidades dos nossos currículos escolares, arriscando-nos assim a colocar em perigo a democracia. A escola ficou de tal forma colonizada pela educação para o emprego, e para o sucesso pessoal e tecnicista, que perdemos o rasto do verdadeiro sentido das coisas. Esta educação para os resultados e para o crescimento económico, ela mesma comercializada e tão frequentemente focada na produção económica e no lucro, uniu energias a uma ciência hiper-obcecada com a objectividade e a quantificação da experiência humana, e deixou-nos basicamente órfãos na preparação para uma competente cidadania e para uma vida coletiva de qualidade. Ao intersectar a epidemia do capitalismo liberal com as metas educativas, fertilizámos nos alunos o silenciamento das suas vozes criticas, e compusemos um quadro de natureza-morta, com seres inanimados, despejados de futuro e de um presente sem propósito. Não nos queixamos por isso da sua apatia, desmotivação e fraco compromisso – ou do nosso próprio. Se na educação houver a depredação de formas diferentes de pensar e atuar, apaixonadas, intensificadas – quantas vezes evitamos outras perspetivas, silenciamos críticas, relegamos e suprimimos sentimentos e emoções, depreciamos o (respeitoso) toque físico, desinvestimos em expressões artísticas e, quando as há, desejamo-las repetitivas e iguais – pomos em risco a capacidade de reflexão, o pensamento crítico e a possibilidade de sentir com o Outro. Porque têm de ser verdes as árvores desenhadas pelas crianças do 4.º ano, de qualquer escola portuguesa? Porque é enviada ao gabinete do psicólogo a menina que pintou tudo de uma só cor (e então se for de preto, pressupomos que se avizinha, seguramente, grave patologia no horizonte)? Porque é preciso dar desalentadoras ‘secas’ moralizadoras aos alunos sobre cadeiras, carteiras, ou portas de casa de banho escrevinhadas, ou sobre copianços? Porque precisam hoje as universidades de comprar programas informáticos para identificar plágios? Porque haverá alunos a passarem a outros apontamentos das aulas com erros intencionais, para que os colegas tenham notas (mais) fracas? Talvez se em vez de dizermos que as árvores são verdes, dissermos, como afirmava esta semana numa aula do ISCSP o nosso colega canadiano, Christopher Kinman, que estão “a esverdear” ou a “amarelar”; se em vez de darmos só estatística, trabalharmos juntos, alunos e professores, em teoria e na prática, a excelência moral; se gerarmos redes de criação, debate e pensamento livre e renovarmos o ensino artístico, literário, filosófico, lúdico, desde cedo e sempre nas escolas; e se não tivermos medo, nenhum de nós, do confronto de perspetivas bem fundamentadas, nem de outras formas de ser escola, que não apenas a instrumental... algo mude e ajude a catalisar uma democracia transformada e humanizada. O movimento dado pelas palavras, pelos sons e pelas imagens nas artes, o estímulo ao questionamento denso e ao contraditório, a elevação humana das virtudes, as formas múltiplas de abordar a vida (cognitiva e abstrata, mas também táctil, emotiva, expressiva, relacional, moral, inventiva, diferenciadora...) permitirá uma liberdade de ação e um dinamismo mais próprio de uma “escola com vida” e de uma perspetiva crítica e igualitária sobre o estar em sociedade. Olhar um quadro, ler uma poesia, ser espectador ou participante num teatro ou concerto, mergulhar num documentário, permite discutir significados e sentidos, desmultiplicar olhares. Leva-nos incomparavelmente mais longe que a mera contemplação de obras, ou que a assimilação tantas vezes acrítica e sonsa de conteúdos e de programas, dedicados ao estrito final objetivo de se ser avaliado – ato que tanto inquieta e perturba alunos, docentes, famílias, e as suas relações. Essencialmente, as artes e as humanidades lançam-nos, como relembra Martha, não na busca do impossível controlo pessoal sobre a existência mas, em alternativa, no reencontro com a empática interdependência e a necessidade da mutualidade e da cooperação, sem as quais não há verdadeira e vital democracia (há um par de meses, uma mãe de uma família numerosa dos Açores, que recebe um pecaminosamente ínfimo rendimento social, e cuja vida não faz inveja a ninguém, apareceu-me com um livro escrito e desenhado por ela para ajudar as relações sociais entre os miúdos nas escolas e tentar debelar o bullying. Um dos seus filhos, com uma doença que lhe atrasa visivelmente o desenvolvimento, sofre dura e diariamente às mãos dos colegas, e ela quer acabar com o flagelo e ajudar muitos outros no caminho. Infelizmente ainda não consegui interessar nenhuma editora...). Veja-se a realidade como se vir, olhe-se do ponto de vista que se olhar, a física ou a química são sempre as mesmas; sinta-se a realidade de uma perspetiva humana e própria, e de um ângulo artístico, e cada música, cada texto literário, cada pintura, frutificará diferente e exclusiva. As artes e as humanidades não podem continuar a ser elitistas. Sublinhe-se: as produções culturais não são meros passatempos para intelectuais; permitem inaugurar debates, elaborar ativismos, pensar a existência coletiva, desconstruir (Veja-se o caso da sida e do HIV, em que a plataforma artística tem permitido um debate social irreverente, e uma visibilidade silenciada por outros meios, ou o poder dos filmes experimentais, dos graffiti ou dos cartoons humorísticos na imaginativa censura social). Ao esvaziarmos a escola de conteúdo artístico e humanístico (e à medida que se avança nos níveis de ensino, esse esvaziar é cada vez mais óbvio, e a competição por resultados cada vez mais dramática, numa espécie de carnificina moral e relacional), convidamos a ter alunos e professores de pedra, e a uma educação frouxa, onde se espera que cada um se abstenha, ou se fixe, não nas ideias, reflexões, expressões, debates, possibilidades, poesias, relações, sentires, mas num power point longínquo que nos afasta – no olhar que assim já não cruzamos, na distância que por isso se impõe (ainda há dias pedi aos meus alunos, a quem admiro, que se chegassem à frente e povoassem as vazias cadeiras das posições mais próximas para nos sentirmos um grupo, e ouvi como resposta: “Professora, aqui vêem-se melhor os slides”). A nossa maior indisciplina na escola é dicotomizar o seu mundo interno: os bons e os maus alunos; os criativos e os desinteressantes professores; os motivados e os desligados; os com futuro e os sem; os que aprendem e os que ensinam; os docentes e os encarregados de educação; os hiperativos e os calmos; os disléxicos e os bons leitores, os que educam e os que ensinam.... Estampamos nomes. Abrimos valas. Tatuamos destinos. Desviamo-nos do essencial. E perdemos a arte de uma vida digna em comum. A comunidade intelectual tem de deixar de ser este lugar segmentado, estropiado, onde muitas vezes já nem se provoca o pensamento, quanto menos a imaginação, e onde separamos a ciência e a técnica da forma artística e humanística de representar e compreender o mundo. A tirania dos bens materiais fez-nos deixar de ensinar (co-construir) o combate pela justiça; o verdadeiro estimulo à diferença; o apelo à empatia; o vibrar com as emoções (dou um outro exemplo: nas minhas aulas pode-se partilhar comida. Receosos, alguns alunos alegam contra, ao referir que já noutras instituições educativas foram alvo de queixas ao conselho pedagógico por docentes que se chocaram com o ato deles comerem nas aulas. Concluo: como a comida nos iguala e aproxima, cria comunidade – o cum–unus – virou subversiva, tal como o riso, e ambos se transformaram hoje, em muitas escolas, em atos políticos). É claro que menos pensantes somos mais controláveis; que mais incapazes de ver e idealizar mundos onde ainda não existem, ou mais limitados em responder com diferentes e fundamentadas perspetivas, seremos mais submissos. Viveremos por isso uma democracia de baixa intensidade, reduzida a uma espécie de arbitragem dos insensíveis egoísmos individuais ou da tremenda luta pela sobrevivência. Não se trata, naturalmente, de objetar contra uma boa educação técnica e científica, mas de a troco dela não perder outros bens essenciais, que Martha nos relembra estarem em perigo de extinção: pensamento crítico, capacidade de transcender as lealdades locais e individuais; arriscar imaginar; compreensão empática; capacitar pelas artes e pela filosofia. Sem este retorno, a escola arrisca-se a ser um instrumento de construção de lugares-comuns, a mera morfologia de coisas acidentais. Confio que em breve deixaremos de estar subjugados ao mesmo monocórdico senhor, o poder económico, e voltaremos a perceber a urgência de investir nessas extravagâncias que são as artes e as humanidades. Sou testemunha de um afã já pressentido em tantos atores escolares desinstalados, e convertidos em criadores de realidades policromáticas, capazes de coadjuvar outros na compreensão das essências. Assim teremos diversos e modernos El Grecos, que nos ajudarão a pressentir novas formas, bem melhores do que as que agora vemos, para pintar, cantar, poetizar, esculpir, documentar a bela realidade que é (ainda) invisível, mas depressa se abrirá, florindo, aos nossos olhos. O prazer visual, o êxtase musical, as palavras divinas andarão de mãos dadas com a ciência e a tecnologia, e voltarão a ser inequivocamente socializadas e socializadoras, numa escola que permite voar. Helena Marujo - PÚBLICO PS: Este texto é uma homenagem a todos os professores, educadores e gestores escolares que diariamente promovem e defendem as artes e humanidades na sua formação e na dos mais jovens. Referências: Marías, F. (2013), El pintor de las mil caras, Babélia, Jornal El País, 14 de Dezembro, pp. 4-5. Nussbaum, M. C. (2010), Not for profit – Why democracy needs the humanities, Princeton: Princeton University Press. «https://www.publico.pt/sociedade/noticia/felicidade-publica-8-privilegios-e-urgencias-de-uma-escola-onde-se-voa-1616602» O espanhol Javier Urra aconselha os pais a imporem regras para não terem filhos tiranos. Poucas, mas para cumprir. Javier Urra é o pai de O Pequeno Ditador, publicado em 2007, pela Esfera dos Livros. Nove anos depois, O Pequeno Ditador Cresceu e por causa dele, o psicólogo e professor da Universidade Complutense de Madrid, regressou a Lisboa para falar do novo livro, mas também do seu programa clínico recURRA Ginso, um campus a alguns quilómetros da capital espanhola que recebe adolescentes e jovens já em fim de linha. Aqueles que não vão à escola, têm problemas de toxicodependência ou que batem nos pais e irmãos.
O livro começa precisamente pelo trabalho que é feito no centro em Brea del Tajo, a 69 quilómetros de Madrid, com exemplos concretos de jovens que batem nos pais, sobretudo nas mães; que impõem a sua lei. Urra foi o primeiro provedor de menores em Espanha, recorda que em 2007 registaram-se 2683 casos de denúncias de maus tratos de filhos a pais, e que dois anos depois eram já 5201. Cerca de 70% dos agressores são consumidores de drogas , mas não são os únicos. E, por isso, o resto do livro agarra na criança desde o seu nascimento, de maneira a dar pistas práticas aos pais para que a eduque de forma a não chegar a ser uma ditadora. Há nove anos entrevistei-o por causa de O Pequeno Ditador, onde dava muitos conselhos aos pais sobre como educar com regras. Agora, O Pequeno Ditador Cresceu, significa que ninguém o leu? Foi em 2007 e os pais leram o livro, em Portugal saíram 33 mil livros, vai na 18.ª edição. Agora escrevo para outros pais, outra geração. Apesar de ter um título semelhante, este livro saiu por outras razões. Porque em Espanha, criámos o programa recURRA Ginso [em 2011], que tem 102 profissionais, 95 jovens internados e mil casos em ambulatório – 65% são rapazes e 35% raparigas com idade média de 16 e meio. Sabemos que 20% tem problemas de transtorno de personalidade, alguns com problemas de hiperactividade e défice de atenção; e 28% dos pais também tem transtornos psicológicos severos. Os restantes são um problema educativo e social. A culpa é da sociedade? Sim, da escola, da televisão, dos meios de comunicação em geral, da Internet… Em dez anos muito mudou e os jovens recebem mensagens diferentes, da sociedade e dos pais. Além disso, passámos por uma situação económica difícil e em Portugal e em Espanha nascem menos crianças. Por isso, os pais converteram a educação num espaço em que as crianças não podem sofrer, estão sobre protegidas. A criança aprende que só tem direitos e não tem deveres e os pais não lhe explicam que também tem deveres. E, por isso, quando crescem, vemos que temos jovens que não vão à escola, estão sozinhos em casa, fumam marijuana… Estes são os casos que chegam ao centro. Em 75% temos êxito, mas este existe porque trabalhamos com os pais e com os filhos. Fazemos terapia individual, de pares, de grupo e de família. Sabemos que os pais ganham novas ferramentas e os filhos também. Os pais choram porque amam os seus filhos; estes também choram quando estão sozinhos ou à noite, porque também querem aos seus pais. Por isso lhe chamo a “patologia do amor”, querem amar-se mas não sabem. São poucos os pais que educam bem? Não. São muitos, mas os filhos são diferentes. Por exemplo, tens quatro filhos e os dois primeiros dizem bem dos pais, o último também e o terceiro não. E o problema é com o terceiro. Mas os pais educaram todos por igual, mas há um filho que não se sente querido. Em Portugal faz sentido ter um centro como o espanhol? Nós queríamos montar um. Em Espanha fizemo-lo com o apoio do Ministério da Saúde que financia parte dos tratamentos. Em Portugal não tivemos resposta positiva e este fica muito caro para as famílias. Quanto custa? Por mês são 4100 euros, um valor que os pais não conseguem pagar. Os pais custeiam 1700 euros, também é caro. Trabalhamos todos os dias, a todas as horas. Mas à noite tenho de ter bons profissionais, por exemplo, um jovem acorda a chorar e preciso de ter um psicólogo que o apoie. E isso custa dinheiro. Tem uma taxa de sucesso de 75% e os outros 25%? Não sabemos. Talvez falhemos nós, mas também há jovens complicados que, às vezes, têm problemas com drogas e aos quais não é fácil chegar. Bárbara Wong - PÚBLICO «https://www.publico.pt/sociedade/noticia/os-pais-tem-medo-de-ser-pais-tem-medo-de-dizer-nao-1722130» Nas famílias Falar de Sexo... Estar informado sobre sexo, sobre sexualidade ou sobre saúde sexual e reprodutiva é antes de mais um Direito! Um Direito de mulheres e homens, raparigas e rapazes... um Direito de todos e de todas! Uma das perguntas mais comuns dos pais, mães e educadores em contexto familiar é "o que devem as crianças e adolescentes saber acerca da sexualidade e em que idade o devem saber?" É frequente existir algum receio de dizer “coisas a mais” e demasiado cedo, havendo o receio de isso poder ferir e/ou encorajar as crianças e adolescentes a tornarem-se sexualmente ativos e ativas prematuramente. A informação e a educação não encorajam os jovens a serem sexualmente ativos. De facto, as crianças e jovens tomam decisões mais conscientes sobre o sexo quando têm a informação que necessitam e quando não se encorajam assuntos tabu (sobre os quais não se “deve” conversar em casa). Apesar de existir informação adaptada às diferentes idades, genericamente pode dizer-se que as repostas devem ir ao encontro das necessidades de informação e, por isso, às perguntas formuladas em cada fase de desenvolvimento. Por exemplo, uma criança de cinco anos pode querer saber corretamente os nomes das partes do seu corpo, incluindo os seus órgãos genitais. Falar de sexo e de sexualidade é importante porque...
...com crianças e adolescentes Quando começar a falar com as nossas crianças e adolescentes sobre sexualidade? "Lá em casa", no contexto familiar, onde existe proximidade e intimidade com a criança ou adolescente, é um contexto privilegiado para se começar a falar sobre sexualidade. É possível aproveitar momentos do quotidiano para estimular a curiosidade sobre o assunto como, por exemplo, falar com a criança ou adolescente ao se avistar uma mulher grávida na rua, ver uma cena amorosa na televisão, ou observar uma caixa de preservativos na farmácia. É importante estar-se atento e disponível para as dúvidas e procurar esclarecê-las. Para isso, é importante responder, sem que isso implique ir além da necessidade de esclarecimento percebida a cada momento, observando-se a forma como a criança ou adolescente vai reagindo à informação. Não vale a pena “florear” e evitar os factos. Mais cedo ou mais tarde, as crianças e adolescentes vão saber mais sobre a verdade; e, se não for em casa, será através de outra fonte de informação (pelas amizades, revistas, televisão, etc.). Algumas sugestões:
Os Valores e as crenças Os valores afectam as escolhas e os comportamentos. No seu desenvolvimento, as crianças e jovens desenvolvem a capacidade de tomar decisões e definem os seus próprios valores. Nesse caminho, os adultos devem ser claros acerca das suas escolhas, sabendo partilhá-las com respeito e sem impor. É importante compreender a diferença entre factos e crenças pessoais. Se alguém considerar, por exemplo, que um/a jovem não deve iniciar as relações sexuais antes da uma dada fase, isso não significa que essa seja uma verdade única para todas as pessoas, mesmo que muitas sigam opções semelhantes. É, por isso, muito importante ajudar as crianças e jovens a compreender a diferença entre os seus valores e a informação factual. Até porque algumas vezes, estas crenças pessoais são dissonantes com o que se observa nos diferentes contextos em redor. O uso de conceitos-chave pode contribuir para esclarecer:
Quando a religião tem um papel importante na vida de uma pessoa adulta, pode também ter um papel na discussão dos valores em relação à sexualidade. Independentemente disto, é sempre importante deixar espaço para que cada um desenvolva as suas próprias crenças e valores, e ter a consciência de que é importante que cada pessoa faça as suas aquisições e faça as suas escolhas. O que lhes dizer sobre… Infeções Sexualmente Transmissíveis Normalmente, quando as crianças ou jovens ouvem falar sobre Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST) pensam em VIH/SIDA. Existem, no entanto, muitas outras. O que é, então, importante saber sobre IST?
Uma das IST, o VIH/SIDA, pode ser um assunto particularmente sensível para jovens. Ouvem muita informação e muita dela é assustadora e ameaçadora. Os/as jovens precisam de saber o que é a SIDA e como a evitar. Estes são alguns factos básicos que pode partilhar:
O que lhes dizer sobre... abuso sexual O abuso sexual acontece sempre que a privacidade sexual de alguém é desrespeitada. Forçar alguém a ter relações sexuais chama-se violação. Mas a violação é só um dos tipos de abuso sexual. O toque não desejado, as carícias não desejadas, a observação não desejada, a conversação não desejada ou ser forçado a olhar para os órgãos sexuais de outra pessoa, são outras formas de abuso sexual. Embora a maioria das pessoas que praticam o abuso sexual sejam homens, os perpetradores podem ser homens ou mulheres, amigos/amigas ou até membros da família. De facto, a maior parte dos casos de abuso sexual são cometidos por pessoas conhecidas ou familiares. O abuso sexual, a violação e o incesto são crimes graves punidos pela lei. No entanto, são ainda seriamente omitidos. Muitas vezes, as vítimas sentem-se demasiado embaraçadas e envergonhadas para contar o que lhes aconteceu. Sentem-se, muitas vezes - ou fazem-nas sentir -, que o abuso ou a violação foi culpa sua. É importante assegurar que as crianças e os jovens sabem que:
...com as pessoas adultas da família Da mesma forma que falar com as crianças e adolescentes sobre sexualidade é complexo, também para eles e elas pode ser difícil falar com as pessoas adultas. No entanto, conversar sobre sexualidade ajuda a estruturar as relações e a criar o contexto para a aquisição de competências e segurança, próprias das relações de intimidade. Algumas sugestões:
...com a parceira ou parceiro Uma comunicação aberta e honesta com a pessoa com quem nos relacionamos sexualmente é um passo fundamental para ter uma vida sexual mais satisfatória e mais saudável. Uma conversa deste tipo merece um ambiente e um espaço confortável para ambos, sendo importante identificar com clareza os assuntos a conversar: contraceção, emoções, prazer, saúde, etc. Algumas sugestões:
...com profissionais de saúde Por vezes, falar com profissionais de saúde pode levantar alguns bloqueios. É possível que o receio seja sobretudo pessoal, por se achar que não é suposto falar da intimidade, por se recear que a outra pessoa fique a pensar mal de nós, por se achar que se corre o risco de exposição e possível perda de sigilo. Apesar destes possíveis receios, a abordagem destas temáticas com profissionais de saúde é muito importante, pois para além de permitir identificar alguma possível patologia, é também um contexto de neutralidade que permite uma abordagem franca e descomprometida. ...com a Escola A Escola tem uma papel importante na educação de crianças e jovens sobre as temáticas da sexualidade. No entanto, não é o único agente na Educação Sexual. Família e Escola têm um trabalho complementar nesta educação, que será tanto mais rica quanto mais feita em sintonia. Neste sentido, a participação de familiares e educadores/as na Escola é uma mais-valia, para que se encontrem estratégias eficazes de melhoria da qualidade da educação. Na perspetiva da Escola, também é importante perceber que a Família tem preocupações e está atenta ao desenvolvimento individual. Referências Pontos nos is - A Educação Sexual lá em casa A brochura “ Pontos nos is: a Educação Sexual lá em casa” destina-se a pais, mães e educadores/as em geral. O que se espera dos pais e das mães e dos/as educadores/as em contexto familiar? O que devem saber sobre sexualidade juvenil para poderem conversar com as crianças e adolescentes? Quais as questões mais frequentemente abordadas? Ditos e Não Ditos - Educação Sexual e Parentalidade“Ditos e Não Ditos - Educação Sexual e Parentalidade” foi um projeto desenvolvido pela APF no ano de 2009, dirigido a pais/mães e encarregados/as de educação de crianças e jovens em idade Escolar, como o objectivo de promover a parentalidade positiva e a formação parental, melhorando a comunicação intrafamiliar e reforçando as capacidades dos educadores nas suas funções parentais. No âmbito deste Projeto, desenhou-se um referencial de formação parental, cuja matriz pode ser consultada aqui. APF - Associação para o Planeamento da Família «http://www.apf.pt/educacao-sexual/nas-familias»
Como é escrever um livro infantil sobre a Carolina, que é surda e cega? Ou fazer as ilustrações sobre o Tiago, que tem paralisia cerebral? É difícil. E é fácil. É o que dizem escritores e ilustradores que foram chamados a contribuir para a colecção “Meninos Especiais”. Vasco Gargalo, ilustrador, pegou num pau de giz e desenhou ao desafio com Martim, num quadro de ardósia. Paula Delecave, designer, pousou a máquina fotográfica, sentou-se no chão e tocou nas mãos e no rosto de Matilde. Luísa Ducla Soares, escritora, passou a tarde numa esplanada a comer gelados e a beber coca-cola com Carolina. Tinham-lhes pedido que usassem o seu talento para construir pontes entre as crianças ditas normais e aqueles meninos com deficiências, mas todos eles descobriram que, primeiro, também eles tinham de as atravessar. “Talvez tenha sido a coisa mais difícil que já fiz”, reflecte a autora de livros infantis e juvenis Alice Vieira.A Alice Vieira costumam perguntar: “Por que é que não escreves sobre o campo?” E ela responde aquilo que considera “ óbvio”: que o que conhece bem é a cidade e não gosta de escrever sobre o que não domina. Fala desta sua “mania” para explicar que tinha boas razões para rejeitar o desafio que lhe foi lançado pela presidente da associação Pais em Rede, Luísa Beltrão. E para sublinhar que, apesar disso, não conseguiu dizer que não ao convite para se reencontrar com João, um menino autista com quem contactara numa outra iniciativa da associação. Objectivo: conhecê-lo melhor e escrever uma história de que ele fosse o protagonista. O livro de Alice Vieira – como os restantes oito, publicados ao ritmo de três por ano – é para crianças. E até à contracapa, em que aparece a fotografia do João e um texto sobre ele sobre o que é o autismo, parece um livro vulgar. “Parece, mas não é. Implicou muito tempo, muito cuidado, o receio de fazer mal, de perturbar os pais, de não conseguir fazer chegar o João aos leitores”, enumera a escritora. A ideia de Luísa Beltrão foi usar as histórias e as ilustrações de pessoas conceituadas para trazer para a luz estas crianças. “Costuma ver pessoas com deficiências no parque infantil? E na esplanada ou no cinema? Mesmo na escola, que agora é obrigatória – estes meninos estão com os seus pares?” A presidente da associação Pais em Rede, ela própria mãe de uma mulher com deficiência, diz que, “salvo raríssimas excepções”, as respostas às suas perguntas são “não”, “não”, “não” e “não”: “Geralmente estas crianças, estes adultos, estão escondidos, vivem escondidos, são invisíveis”. Tornar estes meninos protagonistas de livros de histórias que podem ser lidos pelos alunos das escolas, pelos pais dos colegas de crianças com os mesmos problemas, pelos educadores e professores e até pelos próprios pais das crianças com deficiência, pelos seus familiares e pelos seus amigos, é mais importante do que pode parecer, diz Luísa Beltrão. “É criar pontes para que as pessoas cheguem até elas, e é “revelá-los” “dá-los a ver” sem os preconceitos habituais. “É permitir que todos – mesmos os pais, que muitas vezes vivem numa ilha, demasiado sós com os seus filhos – olhem estas crianças com olhos lavados e limpos, que os vejam como as pessoas que são, com limitações e capacidades, que podem e devem ter amigos e projectos de vida”, explica. Não é um processo fácil. Um ilustrador chegou a conhecer uma das crianças e depois desistiu, sentiu-se incapaz de participar no projecto. Uma mãe aceitou receber o escritor e o ilustrador e depois não deixou que o filho fosse identificado no livro. Não quis que a imagem da criança fosse associada à deficiência. Ao contrário, há quem veja no livro uma espécie de libertação, como Cláudia Mendes, ex-dirigente da Pais em Rede e mãe de Matilde, uma menina que do ponto de vista administrativo acompanha a turma do 4.º ano desde o jardim-de-infância mas na realidade ocupa um espaço especial na escola, a sala de apoio à multideficiência. “Todos os meninos da escola leram o livro e puderam depois visitar e brincar com a Matilde e fazer um desenho sobre o que tinham aprendido sobre ela. De repente os colegas da minha filha começaram a vir ter comigo – um disse que era fã da Matilde, outro que finalmente tinha percebido por que é que ela não fala. Mas, principalmente, todos perceberam que nos dias bons – porque há dias maus – podem brincar com a Matilde”, diz Cláudia.
Matilde, de 9 anos, tem a síndrome de Pitt-Hopkins, uma das doenças designadas como “raríssimas”. “As crianças com esta doença têm dificuldade em aprender. Mas podem ser felizes e sorrir muito. Também podem, no entanto, ter surtos de angústia e outras perturbações de comportamento. É uma vida difícil, mas que nem por isso deixa de poder ser feliz”. É isto que se lê na contracapa do livro de Rui Zink, que Paula Delecave ilustrou. “Foi uma experiência de vida. Tudo, desde o início. Um pouco de medo do que você desconhece, primeiro. E depois aproximar-se. Entrar no quarto dela, o seu mundo. Tirar algumas fotos, perceber que antes de continuar tinha de largar a máquina fotográfica, tocá-la e deixá-la tocar-me, para nos conhecermos”, descreve a designer e ilustradora. No livro usou fotomontagens e colagens “sem paternalismos, mostrando Matilde tal como a viu: “uma menina alegre, com uma relação intrincada com a mãe, que adora o baloiço e para quem ser Matilde, como escreveu o Rui [Zink] é uma aventura”, diz Paula Delecave. Aquele encontro foi tão marcante que a ilustradora colocou-se, literalmente, no livro. Está na página onde Rui Zink dá voz a Matilde: “Essa doença torna difíceis, para mim, coisas que para ti são fáceis. Correr, saltar, brincar no pátio. Até aprender. E falar. Dizer o meu nome. Ou o teu”. A ilustrar, quatro crianças: uma sentada (Matilde), outra a fazer o pino, uma terceira a andar de bicicleta e a última a velejar. Os rostos daqueles corpos de meninos irrequietos são fotografias – uma da própria Paula e as outras de seus familiares em crianças. Ana Ferreira, designer gráfica, também polvilhou o livro escrito por Luísa Ducla Soares com as suas próprias referências. Neste caso, traçando o mapa da viagem que ela própria fez até chegar a Tiago, um menino com paralisia cerebral. "Um exemplo: desenhei uma estante com livros que têm escrito nas lombadas os nomes das estações de metro de Milão. Porque foi lá que me cruzei com a pessoa que me levou até à Luísa Beltrão, que por sua vez me permitiu encontrar o Tiago e viver esta experiência marcante”. Paula Ferreira transformou o lenço com que o pai limpa a boca a Tiago num adorno à cowboy e desenhou o menino tal como o vê e o conhece – “Um rapazinho que está numa cadeira de rodas mas consegue voar – a cavalo ou mesmo sobre uma prancha de surf”. Mas a história é outra. Luísa Ducla Soares ainda falou com a mãe de Tiago, mas acabou por decidir concentrar na personagem várias pessoas com paralisia cerebral que conheceu ao longo da vida. “Cada escritor tem as suas particularidades, as suas vivências, a sua maneira de responder a este desafio”, comenta Luísa Beltrão. Alice Vieira, por exemplo, teve muita dificuldade em comunicar com João, uma criança autista. E se se esforçou. “Convidou-nos a ir a casa dela e ficámos a conversar, enquanto o João andava por ali, a mexer nas coisas e a pô-las a rodopiar”, conta a mãe da criança, Helena Sabino. E Alice Vieira diz: “Eu estava a ouvir a mãe, a vê-lo a brincar, no seu mundo, e a pensar: como é que eu chego até ele? Até que a mãe disse que ele gostava de chapinhar nas poças de água e eu me lembrei de um encontro anterior com o João, também numa acção da Pais em Rede, em que o objectivo era tirar uma fotografia. Estava a ser igualmente difícil, até que passou um avião, eu apontei, ele olhou e por uns momentos – apenas aqueles momentos, uns segundos – eu senti que nos tínhamos encontrado”. Na história, João, por uns segundos apenas, comunica com uma menina que como ele gosta de saltar nas poças de água da chuva. “Não aconteceu e ainda assim é, de alguma forma, verdade – podia ter acontecido”, diz a mãe. Em todos os casos há uma forma de aproximação e em cada uma delas o caminho é diferente e resulta em histórias com diferentes graus de comprometimento com a criança real. Teolinda Gersão, escritora, e Carolina Arbués Moreira, designer, conheceram a mesma Carolina, uma criança surda e cega. Ambas viram como uma heroína aquela menina inteligente que comunica com a mãe através de toques nas mãos, que escolhe a roupa para cada ocasião e a veste sozinha e que participa na vida familiar de forma plena, ajudando, inclusivamente, nas tarefas domésticas. Carolina Arbués Moreira retratou-a como “uma heroína, que é o que ela é”, uma menina de olhos fechados e braços longos, longos, capazes de abarcar o mundo e de o tornar seu. Teolinda Gersão procurou transmitir o que viu de outra forma, mais convencional e também, acredita, mais acessível aos pequeninos leitores. Na história, a menina também uma heroína, acorda com a casa em chamas e dá o alerta que permite que toda a família se salve. Vasco Gargalo, que ilustrou o livro Martim, um menino assim, escrito por José Luís Peixoto, hesitou antes de decidir ser fiel às características físicas das crianças com síndroma de Cornélia Lange, que têm pestanas longas, sobrancelhas tão compridas que tocam uma na outra e o narizinho arrebitado. Depois, ainda mandou o esboço à mãe de Martim. “Disse que faltava ali a vivacidade, o brilho e a alegria do olhar de Martim. E tinha razão. Voltei a desenhar e ela ficou encantada”, conta o ilustrador. Aquela dúvida só chegou depois de se ter encontrado com o rapazinho e de ter desfeito muitas outras. Como agir? Descobriu fazendo. Pegando num pedaço de giz e cobrindo de traços o quadro de ardósia que Martim não distingue das paredes quando desenha “os seus mundos encantados”; e dançando como um louco as músicas que Martim cria na própria cabeça. "Nunca um livro me provocou tantas emoções como este”, diz Vasco Gargalo. Os livros da colecção Meninos Especiais, cuja edição é patrocinada por diversas instituições, não são best-sellers. Não chegam às livrarias, só podem ser adquiridos por encomenda directa (através do endereço electrónico encomendasmeninosespeciais@gmail.com) – ainda assim, diz Luísa Beltrão, “já se venderam” 10 mil exemplares. São considerados importantes, mas não menos que os próprios escritores e ilustradores, a quem a experiência modifica e transforma numa espécie de embaixadores da inclusão. É que, no fim, depois de ser difícil, o encontro torna-se fácil, explicam alguns. Vasco costuma estar com Martim, que brinca com o seu filho, Henrique. Ana Ferreira não descansou enquanto não soube se Tiago tinha gostado de se ver com o lenço à cowboy – e gostou, soube pela mãe, com quem fala ao telefone. Carolina Arbués Moreira moveu mundos e fundos para que a menina surda e cega, não fosse a única a não poder “ler e ver” o livro, e conseguiu que o Centro Helen Keller produzisse dois exemplares em braille, com ilustrações em relevo, uma para ela própria, outro para Carolina – “De repente, isso para mim tornou-se essencial. E foi possível devido à generosidade de muitas pessoas. É um feito, o destas crianças: têm a capacidade de juntar as pessoas, de as envolver de as fazer mexer”, descreve Carolina Arbués. Diz que só sabe disso quem as conhece – cada vez mais gente. Graça Barbosa Ribeiro - PÚBLICO «https://www.publico.pt/sociedade/noticia/era-uma-vez-nove-meninos-reais-1721516» O Agrupamento de Escolas Coimbra Centro apresentou hoje seis postais com imagens icónicas da cidade, legendados em língua gestual por cinco crianças surdas do Jardim de Infância de São Bartolomeu. As ilustrações dos postais foram concebidas pelo artista plástico Victor Costa e são acompanhadas por fotografias das crianças a traduzirem para língua gestual portuguesa o nome dos locais retratados.
Os postais (com 100 exemplares de cada um) foram realizados no âmbito do projeto "À Descoberta da Cidade - Coimbra em LGP [língua gestual portuguesa]", que decorre no Jardim de Infância de São Bartolomeu. As cinco crianças surdas do grupo bilingue do jardim-de-infância "visitaram os locais" retratados nos postais, por forma a conseguirem associar o local à sua denominação, explanou a educadora responsável, Lídia Oliveira, que falava aos jornalistas à margem da apresentação das ilustrações, que decorreu hoje à tarde no Café de Santa Cruz. "A memória auditiva [nas crianças surdas] não existe ou é muito ténue. Por outro lado, desenvolvem a memória visual. Portanto, era fundamental ensinar os gestos no local, de forma a reconhecerem o espaço", afirmou. Para isso, as visitas contaram também com uma explicação do contexto e das histórias por detrás dos espaços, para facilitar a associar a imagem ao gesto, referiu Lídia Oliveira. Nos postais, estão retratadas a Tricana, no Quebra Costas, o Café Santa Cruz, a Torre "A Cabra" da Universidade de Coimbra, uma paisagem da cidade, o Mosteiro de Santa Clara a Velha e o Portugal dos Pequenitos. "Como são crianças muito especiais, a leitura do mundo é mais literal e é necessário levá-las aos sítios para entenderem os seus elementos", reforçou Manuela Carvalho, da direção do agrupamento. Segundo Manuela Carvalho, o objetivo passa por fazer mais postais de Coimbra legendados em LGP, bem como disponibilizá-los em diferentes locais da cidade (de momento, apenas estão disponíveis no jardim-de-infância e na sede de agrupamento). Um conjunto de seis postais custa cinco euros e o valor reverte para a realização de mais atividades no exterior das crianças surdas do agrupamento. A impressão dos postais foi financiada pela União de Freguesias de Coimbra. Nuno Noronha - LIFESTYLE/SAPO «http://lifestyle.sapo.pt/familia/noticias-familia/artigos/escolas-de-coimbra-lancam-postais-legendados-em-lingua-gestual» O professor português Carlos Neto não foge a temas polémicos relacionados ao desenvolvimento infantil. Em entrevista por email à Gazeta do Povo, ele fala sobre a importância das brincadeiras de luta entre crianças, vistas como nocivas por pais e especialistas. Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, o português Carlos Neto não foge a temas polémicos relacionados com o desenvolvimento infantil. Em entrevista por email à Gazeta do Povo, ele fala sobre diversos temas, em cinco capítulos que iremos publicar em nosso site, um por semana, relacionados com os desafios da formação das crianças de hoje. Neste primeiro trecho da entrevista, ele fala da importância das brincadeiras de luta entre crianças, ainda hoje vistas como nocivas por pais e especialistas:
Como os jogos influenciam a formação das crianças? O processo de desenvolvimento humano ocorre entre duas dinâmicas opostas e complementares: a procura de proximidade (segurança) e a necessidade progressiva de distanciamento (autonomia). As crianças menores procuram afeto e as mais velhas independência. Este é um fenómeno que acontece em quase todas as espécies animais. Trata-se de uma questão de sobrevivência e de aquisição de ferramentas muito úteis para se tornar adulto. Este mecanismo adaptativo é ainda mais particular no ser humano por ter uma infância relativamente longa e necessitar assegurar a sua sobrevivência através de uma relação muito complexa entre mudanças que ocorrem no seu corpo e no seu ambiente. O desenvolvimento do jogo e da motricidade permite uma conquista progressiva de autonomia do homem através de referências biológicas e culturais. As brincadeiras de luta também são importantes na infância? Elas são uma das mais fascinantes linguagens do corpo numa perspectiva evolutiva. Os comportamentos de jogo de luta a brincar (play-fighting), jogo de perseguição e caça (play-chasing) e jogo de luta a sério (real-fighting) têm sido largamente estudados no comportamento animal e humano. Todas as crianças saudáveis têm necessidade de brincar às lutas ou a jogos de perseguição. São atividades ancestrais que devem fazer parte das culturas lúdicas na infância. É correto os pais proibirem as lutas? O contacto físico através dessas brincadeiras e a consequente perseguição, são comportamentos que não devem ser proibidos. Pelo contrário, devem ser implementados entre pais e filhos em casa, entre as crianças no recreio ou em jogo livre nos espaços exteriores. Reprimir este tipo de brincadeira é um erro estratégico do ponto de vista educativo e terapêutico. No entanto, devemos ter atenção quando assistimos a lutas a sério de forma repetida em crianças (principalmente nos recreios escolares), porque isso pode denotar comportamentos de “bullying”. Como os brinquedos bélicos podem interferir no desenvolvimento? Se as famílias e as escolas não fornecerem brinquedos bélicos às crianças, elas terão a ocasião de encontrar objetos que imitarão esse tipo de brincadeira. Estes brinquedos bélicos naturais, artesanais ou industriais (como a maior parte dos jogos de guerra eletrónicos) são fundamentais para o desenvolvimento motor, cognitivo e social da criança. Elas brincam à guerra (faz-de-conta) de forma simbólica e adquirem várias competências muito importantes: noção de ataque, defesa, território, fuga, simulação, sobreviver, morrer. As lutas não estimulariam comportamentos agressivos? Estas formas de brincar são muito importantes durante a infância e uma estratégia decisiva em interiorizar e humanizar os impulsos agressivos que fazem parte da natureza humana. As nossas pesquisas têm vindo a demonstrar que os jogos de luta e a utilização de brinquedos bélicos têm um estereótipo predominantemente masculino e não se verificaram nas crianças estudadas alterações ou aumento de comportamentos antissociais ou agressivos entre pares. Devemos ainda lembrar que os brinquedos bélicos têm uma existência muito significativa em todos os estudos realizados em pesquisas etnográficas sobre jogos tradicionais na infância, em diversos continentes e culturas. Existem muitos benefícios no desenvolvimento da criança na utilização destes objetos lúdicos, apesar da polémica científica e pedagógica ainda existente sobre o papel nocivo dos brinquedos bélicos. Adriano Justino exclusivo para Gazeta do Povo «https://criancasatortoeadireitos.wordpress.com/2016/01/01/criancas-devem-lutar-entrevista-carlos-neto/» Além das complicações na vida dos filhos, como dificuldade de socialização e insegurança, deixar a criança comandar a dinâmica familiar pode prejudicar – e muito – o casal As atividades da família são definidas em função dos filhos, assim como o cardápio de qualquer refeição. As músicas ouvidas no carro e os programas assistidos na televisão precisam acompanhar o gosto dos pequenos, nunca dos adultos. Em resumo, são as crianças que comandam o que acontece e o que deixa de acontecer em casa. Quando isso acontece e elas já têm mais de dois anos de idade, é hora de acender uma luz de alerta. Eis aí um caso de infantolatria.
“O processo de mudança nos conceitos de família iniciado no século 18 por Jean-Jacques Rousseau [filósofo suíço, um dos principais nomes do Iluminismo] chegou ao século 20 com a ‘religião da maternidade’, em que o bebê é um deus e a mãe, uma santa. Instituiu-se o que é uma boa mãe sob a crença de que ela é responsável e culpada por tudo que acontece na vida do filho, tudo que ele faz e fará. Muitos afirmam que a mulher venceu, pois emancipou-se e foi para o mercado de trabalho, mas não: é a criança que entra no século 21 como a vitoriosa. Esta é a semente da infantolatria”, explica a psicanalista Marcia Neder, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da Universidade de São Paulo (Nuppe-USP) e autora do livro “Déspotas Mirins – O Poder nas Novas Famílias”, da editora Zagodoni. Em poucas palavras, Marcia define infantolatria como “a instituição da mãe como súdita do filho e o adulto se colocando absolutamente disponível para a criança”. E exime os pequenos de qualquer responsabilidade sobre o quadro: “Um bebê não tem poder para determinar como será a dinâmica familiar. Se isso acontece, é porque os pais promovem”. Reinado curto A verdade é que existe um período em que os filhos podem reinar na família, mas ele é curto. “Quando o bebê nasce e chega em casa, precisa ser colocado no centro das ações, pois precisa ser decifrado, entendido. Ele deve perder o trono no final do primeiro, no máximo ao longo do segundo ano de vida, para entender que existe o outro, com necessidades e vontades diferentes das dele”, esclarece Vera Blondina Zimmermann, psicóloga do Centro de Referência da Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A infantolatria ganha espaço quando os pais não sabem ou não conseguem fazer essa adequação da criança à realidade que a cerca e a mantêm no centro das atenções por tempo indefinido. “Em uma família com relacionamento saudável, o filho entra e tem que ser adaptado à dinâmica da casa, à rotina dos adultos”, afirma a psicóloga. Segurança ou insegurança? Na casa da analista contábil Paula Torres, é ao redor de Luigi, de cinco anos, que tudo acontece. Entre os privilégios do garoto estão definir o canal em que a TV fica ligada e o dia do fim de semana em que será servida pizza no jantar. “Acho importante a criança se sentir amada e saber que suas vontades são relevantes para a família”, opina. Ela conta que seu marido, o também analista contábil Luiz André Torres, não gosta muito disso e constantemente reclama que o filho é mimado demais. “Mas bato o pé e defendo essa proteção. Quando o Luigi crescer, será mais seguro para lidar com os adultos, já que suas opiniões são levadas em consideração pelos adultos com quem ele convive desde já”, acredita. Não é o que as especialistas dizem. “Se o filho fica no nível dos pais, acaba criando para si uma falsa sensação de poder e autonomia que, em um momento mais adiante, se traduzirá em uma profunda insegurança. Ele sentirá a falta de uma referência forte de segurança de um adulto em sua formação”, explica Vera. Marcia diz ainda que, ao chegar à idade adulta, esse filho cobrará os pais. “Ele olhará ao redor e verá outras pessoas se realizando independentemente dele. A criança que acha que o mundo tem que parar para ela passar não consegue imaginar isso acontecendo e não está preparada para lidar com a mínima das frustrações. Em algum ponto, acusará os pais de terem sido omissos”. Para Vera, supervalorizar os pequenos e nivelá-los aos adultos “é o resultado de uma projeção narcísica dos pais nos filhos, que se veem nas qualidades que enxergam em suas crianças”. Marcia concorda: “Isso tudo tem a ver com a vaidade da mãe, que considera aquele filho uma parte melhorada dela própria e, por isso, a criatura mais importante do mundo”. Os alertas do dia a dia Muitas vezes, os pais não se dão conta de que estão tratando os filhos como reis ou rainhas, então precisam levar uns chacoalhões da realidade fora de suas casas. “Eles geralmente caem em si quando começa a sociabilização. A escola reclama porque o aluno não respeita as regras, a criança tem dificuldade para fazer amiguinhos porque as outras, com autoestima positiva, não querem ficar perto de alguém que ache que manda em todos”, aponta Vera. “Em um futuro bem imediato, as reações dos colegas podem fazer a criança perceber que precisa mudar. Ela se comportará com eles como faz com a família e receberá a não-aceitação como resposta. Terá de lidar com isso para ter amigos”, afirma Marcia. Mesmo assim, ela ainda correrá o risco de não conseguir rever seus comportamentos devido a uma superproteção parental, adverte Vera: “Em alguns casos dá para ela se salvar, mas muitos pais preferem culpar o ‘mundo injusto com seu filho perfeito’, o que impede que ela entenda as necessidades dos outros e reforça seus problemas de inadequação para a adaptação social”. E como fica o casal? Além de todas as complicações causadas pela infantolatria na vida dos filhos, ela prejudica – e muito – o casal que a promove. “Na relação saudável, o casal continua sendo o mais importante na família mesmo com a chegada da criança. Se os pais mantêm o filho no centro por mais tempo do que o necessário, acabarão se afastando”, alerta Vera. “Some o casal. O ‘marido’ e a ‘mulher’ passam a ser o ‘pai’ e a ‘mãe’. E se em uma casa a mãe é a santa e o filho é o deus, onde fica o espaço do pai?”, questiona Marcia. “Muitos tentam entrar, reconquistar seu espaço, mas outros simplesmente caem fora”, constata. O futuro da infantolatria Sabendo disso tudo, os pais têm condições de se preparar para evitar os estragos na criação dos filhos. Marcia conta que percebe que as pessoas têm encontrado em sua análise uma saída para a tirania infantil. “Não sou adivinha, mas creio que o novo arranjo familiar, em que os pais também assumem funções na criação dos filhos e as mães seguem carreiras por prazer, vá ajudar a mudar o panorama, assim como os arranjos homoparentais que começam a ser mais comuns”, diz, para complementar: “Creio que todos os comportamentos continuarão existindo, mas temos a obrigação de trabalhar para reverter esse quadro. O filho não é o centro porque quer, mas porque o adulto permite”. Vera enxerga o futuro da situação de forma um pouco diferente. “Nossa sociedade é muito apressada e, no geral, não dá espaço para a preocupação com o outro. Isso tende a potencializar esse tipo de problema, a naturalizar para a criança o fato de que ela é o que mais importa, como aprendeu em casa com o comportamento dos pais em relação a ela”, finaliza. Raquel Paulino - especial para o IG S. Paulo «https://criancasatortoeadireitos.wordpress.com/2015/07/30/infantolatria-as-consequencias-de-deixar-a-crianca-ser-o-centro-da-familia/» Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida. Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:
- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha. O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão: - Não se chegue muito que esta gente tem piolhos. Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro) de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico - Agora veja lá, não gaste tudo em vinho o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo: - Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros - O que é que o menino quer, esta gente é assim e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano. Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse - Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão. Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso. Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis". António Lobo Antunes |